Sunday, November 05, 2006


A linha tênue


No início da primavera estávamos a caminho de casa, um pouco frustrado pois, devido à morte de Balduino II e à formação da Ordem dos Templários, meus serviços já não eram mais necessários em Jerusalém, dessa forma fora enviado de volta. Explicando de modo mais claro, fui para as cruzadas com o espírito cheio de fé, pronto para levar a palavra santa a todos e esparramar a glória do senhor por toda a terra, sentia como se conseguisse abraçar o mundo, como se nada pudesse me deter, meus votos de Cavaleiro ecoavam repetidamente em minha cabeça, me sentia forte, vigoroso como um viking, mas minhas forças foram desnecessárias.

Às vezes sorrio jocosamente em pensar que fui às cruzadas e voltei sem mesmo desembainhar a espada, mas apesar de tudo, foi uma viagem um tanto interessante, conheci Viena, Trípoli, Antióquia e até Constantinopla, mesmo que não sinta minha fé renovada por visitar aos lugares santos, tampouco sinta a presença Divina mais forte em mim, minha convicção para o bem ainda é forte. Por um outro lado, é como diz Alice, “dentre os males, fiquemos com o melhor”, aliás, ela foi a única grande recompensa desta viagem, casei-me com ela e decidimos que as núpcias ficariam para a chegada à nossa terra. Ah como eu gosto do contraste de seus olhos caramelados em contraste com seu colar de ouro que, como pingente tinha uma pedra cuidadosamente retirada do Monte das Oliveiras.

Tão logo chegamos, procurei uma audiência com o Senhor de Saint Jean, e tão logo conversamos sobre o contrato, ele se recusou a cumprir a promessa de seu pai, enfatizando que não haviam mais terras a serem doadas e, mantendo um sorriso um tanto sarcástico, dirigiu me algumas calúnias e balburdias a respeito de meu valor para a realeza ou para o Papa. Senti-me traído, como se fora enganado e, tudo aquilo por que lutava – ou queria ter lutado - derramara-se como água, então dirigi palavras grossas ao Lorde, que me respondeu o seguinte discurso.

“Você não vale nada, não vale o que come, o que bebe, não vale nem mesmo o sangue que corre em tuas veias, não passa de um servo que foi pobremente enobrecido com o direito da espada. Não terá tuas terras, aliás Minhas terras, pois eu sou dono delas agora, então saia de minha frente seu Bastardo!”

As palavras ecoaram em meu coração como cravos, vi-me tomado por um ódio ilimitado, como que, se eu gritasse, tudo aquilo desabaria, mas o grito não saiu, ficou entalado, produzindo apenas um silêncio odioso que quebrei com o bater das portas durante minha saída.

Passando pela praça deparei-me com jovens treinando para a arquearia ou infantaria, jovens que foram pegos pela mesma promessa que eu fora, então sem pensar, dirigi-me a eles a passos pesados, arrancando suas armas de madeira e batendo em suas cabeças. –Voltem para casa. Eu dizia. –Voltem para casa. Ele é um mentiroso, o Senhor de Saint Jean é um mentiroso, ele quer levá-los para a morte. Ele não está a serviço do Papa. Gritava isso repetidamente, minha garganta doía, e sentia alegria no coração, afinal “minha palavra só dirá a verdade”. Via as pessoas falando coisas, mas não ouvia sons, estava entorpecido, tão logo ouvi o grito desesperado de Alice me pedindo para parar, vi a multidão se abrindo e os guardas chegando, então fugi, pulando e me jogando por cima das pessoas, corri como um covarde, tive medo, mas estava aliviado, refugiei-me no bosque até o escurecer. Pensava em voltar para casa, pegar Alice e ir para a Normandia ou Inglaterra.

Assim que me acalmei, tomei o rumo de volta à cidade, com toda a cautela, observando, mediando, planejando o melhor caminho, para que o menor número de pessoas me vissem, teria de ser rápido, abordar Alice, e trazê-la para fora. Então, passei pelo portão lateral, entrei por uma viela escura à esquerda, subi correndo as escadarias, tão rápido que dois senhores nem conseguiram me identificar, subi no telhado do estábulo e então pulei para dentro de casa. Havia um cheiro gélido no ar, no mesmo momento um forte calafrio subiu por minhas costas, amolecendo minhas pernas, caí de joelhos, meu mundo desabou com a imagem de Alice pendurada pelo pescoço, enforcada. Engoli seco, mais uma vez, senti um gosto amargo, gosto de ódio com desespero, dentre grunhidos e suspiros, tentativas desesperadas de achar palavras ou qualquer coisa que desfizesse tudo isso, chamei seu nome, mas não houve resposta. Corri para seu corpo, a soltei e desabei junto a ela, quando me dei conta, seu pingente estava em minhas mãos. Tentei acordá-la aos tapas, mais uma vez, sem resposta.

Sai bruscamente aos tropeços pela porta, desci a rua como se fosse um bêbado, esbarrei nas coisas e nas pessoas, por sorte não fui visto por nenhum guarda, voltei para o bosque e simplesmente caí, deixei-me levar, desisti, a imagem das marcas no corpo de Alice me castigavam, como se fossem minhas, me desesperava mais e mais ao pensar o quanto ela chamou para que fosse salvá-la, o quanto ela esperou até seus eternos últimos segundos. Gritava, aclamava por um milagre, e uma única pergunta não me saia da cabeça: -Deus, onde está você? Pedia que ouvisse minhas preces e a salvasse nesta noite. Eu olhava para seu pingente, e me lembrava de seu sorriso, de seus olhos, agora fechados para sempre, então pude sentir sua dor e desejei que, a cada suspiro meu, fosse o último.

Para meu desespero, acordei na manhã seguinte, andei por horas a finco, sem direção, andei em círculos, andei pelo bosque, pelas plantações de trigo, de repolho, andei durante a noite, sob a lua e o sol e como único companheiro, o pequeno pingente, ele era o único alivio para minha dor, minha única alegria, por segundos eu o contemplava e a nostalgia levava, por breves segundos a dor embora. Nesses dias eu o admirava sempre.

Um certo dia, ao passar por um pequeno riacho, tropecei e fui ao chão sem esforços para permanecer andando, levantei-me com a ajuda de minha espada, foi então que meu voto ecoou como um trovão dentro de mim:

“Seu coração carregará a fé.
Sua palavra só dirá a verdade.
Sua espada trará justiça...”.

-Justiça seja feita. Falei para mim mesmo, e ao ouvir minha própria voz proferindo a sentença, senti-me diferente, minha dor virara empenho.

Por dias observei, planejei e arquitetei um modo de entrar e sair do nobre casarão sem que me percebessem, andava encapuzado, pelas sombras, pelas vielas, não conversava com ninguém, nem mesmo falava sozinho, agora era só comigo, entre eu e o Senhor de Saint Jean.

Na noite mais propícia para a investida, aproximei-me do casarão, passei pelas patrulhas que embebidas dormiam profundamente, passei pelos arqueiros das torres, subi pela lateral dos portões principais, rastejei pelo telhado do primeiro piso, subi pelo roseiral que dava acesso ao quarto do Senhor, então, cautelosamente entrei pela varanda e durante meus primeiros passos, lentamente desembainhava a espada e a empunhava tão fortemente que meus pulsos doíam e até começaram a tremer, mesmo assim mantinha a lamina para cima, pois não queria que fosse um sacrifício e sim uma execução.

Logo que adentrei o quarto, o assoalho rangeu e ouvi um súbito “Ã?”, vi algo se movendo em minha direção, golpeei sem exitar, e então o som da espada cortando foi acompanhado de um grito agonizante de dor, ouvia movimentos pelo quarto, até que uma tênue luz se acendeu, então vi, que decepara o braço do Senhor e, ainda percebi que, no canto à minha direita, a Senhora e seus dois filhos estavam encolhidos, abraçados, tão aterroziados que só conseguiam emitir grunhidos para pedir ajuda, eu senti meu rosto sorrindo com um tom levemente sarcástico, dei-lhes as costas, ergui a espada acima de minha cabeça, olhei nos olhos do Senhor, que expressava impotência e desespero, mas quando preparei o golpe, um dos filhos do Senhor correu em minha direção, seus passos foram seguidos de um inteligível e desesperado chamado da mãe. O garoto chorava e a única coisa que consegui entender foi: “Não... mate!”.

Rapidamente eu me virei para a mãe e para as crianças e disse: -Lagrimas de sangue eu chorei, mas os gritos ainda... eu ainda os ouço dentro de mim. Justiça seja feita!

Depois daquela noite, eu andei por bosques, cidades , atravessei rios, subi montanhas, até que encontrei um monastério isolado, silencioso, onde me refugio até os dias de hoje. Perdi minha fé, não sinto Deus na Justiça, e também não vejo a linha tênue que separa a Justiça da Vingança. Ainda sinto-me vazio, não sinto mais dor alguma, a não ser quando olho aquele velho pingente.
Escrito em Março de 2006

0 Comentários:

Post a Comment

<< Home