Sunday, November 05, 2006

Para nunca mais dizer adeus

A grande perseguição persistia, enquanto Nero festejava e banqueteava nos ilustres palácios e templos, aqueles com crenças “impróprias” eram massacrados, obrigados a viver em fuga ou em cativeiros, trancafiados, expostos a trabalhos que alimentavam as bocas daqueles que nos perseguiam. Ainda me lembro do tempo em que podíamos cultivar a terra, desfrutar o bom vinho, pão e a boa música ao lado de nossos mais adoráveis companheiros, até o contemplar de um novo dia surgindo. Também me lembro de como amaldiçoei o dia em que resolvi viver próximo à Maravilhosa Cidade, o dia em que a perseguição foi declarada, minha liberdade foi ceifada como o trigo, o dia em que as adoráveis companhias se foram, levadas por correntes, laminas ou lanças, lhes disse adeus, quando não queria e, sonhos inspirados no passado e no futuro, alimentavam ao mesmo tempo lagrimas e esperança.

Meus dias são cansados, trabalho após trabalho, como se fossem intermináveis e estivesse preso em um ciclo de servidão. Ao mesmo tempo, em breves momentos de lucidez, fico horrorizado, pois não me vejo mais como livre, olho me no reflexo da água e vejo um homem incapaz de ser livre, de desfrutar vinho e música com agradáveis companhias então sinto um vazio em meu peito, tão gélido como as correntes que me prendem todas noites, momentos de escuridão em que a única coisa que me conforta e me acompanha são conversas solitárias comigo mesmo, ou talvez para alguém que esteja além das montanhas que desenham o horizonte, ou acima das nuvens, sonhos que, ao contrário do que sei, não me motivam à caminhar, mas me impedem de regredir. Pedidos, desejos, preces inúmeras com toda a força e fé que me restam, principalmente de uma companhia especial, em não mais ter de dizer adeus, sonhos de liberdade.

Mais uma vez o sol irrompeu sobre a escuridão, delineando nuvens que eram apenas nuvens e o dourado do trigo era apenas dourado, foi quando avistei um carro guiado por bois e alguns soldados, “novos escravos”, pensei, pois se tratava de uma gaiola, com pessoas dentro e a grande maioria com a marca do peixe no braço, outros provavelmente criminosos ou inimigos de guerra. Fiquei parado olhando, um a um descer e se enfileirarem, homens e mulheres com olhares vazios, podia sentir suas esperanças se esvaindo pelas correntes que os prendem, observei cada rosto com calma, como se contemplasse o vazio em seus olhares semelhantes ao meu e entre si, exceto o de uma estranha jovem de cabelos longos e negros como a noite, seus olhos contemplavam algo misterioso, a ponto de ocupar minha mente por alguns dias, ficava me questionando “o que de tão misterioso ela carrega consigo?”, e a cada encontro nosso, mais ficava intrigado, mesmo com uma simples troca de olhares. Posteriormente descobri que seu nome é Vênus.

Por vezes nos era ordenado a carregar o trigo em carroças e trazê-lo até os silos, nesses momentos conversávamos, sobre muitos assuntos, sobre o passado, sobre sonhos e até segredos, sentia-me bem, pois conseguia lhe dizer e ouvir coisas que julgava privilégio de grandes homens ou do mundo dos sonhos, mesmo que em algumas delas não tinha forças para acreditar, isso ressoava fortemente em mim. Dessa forma Vênus passou, não só a povoar minha mente em conversas silenciosas a todo o momento de vigília, como meus sonhos, pensava e repensava inúmeras coisas a nosso respeito, sentia uma força crescendo dentro de mim, algo que estava despertando e sentia que os grilhões não seriam fortes o bastante para deter, mas tinha medo. Ao mesmo tempo sentia que minhas palavras a tocavam, assim como suas palavras me tocavam.

Assim que o sol se pôs, estava guardando as ferramentas, ouvi um tumulto, gritos de dor e de raiva vindos da casa dos senhores. Eu e outros corremos para ver do que se tratava, foi quando vi Titus, um dos escravos, deitado todo recolhido no chão e um dos soldados o espancava com uma vara de madeira, o soldado lhe dizia com raiva “Isso vai lhe ensinar a não roubar mais pão!”. A cena me perturbou, senti que meu peito explodiria, queria desentalar o grito que guardava a tanto tempo, enfrentar o soldado. Vacilantemente olhei do outro lado da confusão e vi Vênus, senti que estava com a mesma intenção que eu, mas também sabia que deveríamos tomar essa ação juntos, caso contrário, seria somente mais um a ser castigado, então hesitei, “eu sou apenas um fazendeiro, um servo não um assassino” pensei.

Minhas noites foram inquietas, depois do incidente, pensava inúmeras vezes se deveria ter reagido, andava para um lado e para outro, a cena se repetia em minha cabeça, fortemente marcada pelo olhar de Vênus, como se esperasse apenas eu dar um passo à frente para se juntar a mim, conseguia ler seus negros olhos, não eram mais misteriosos.

Conversando com Vênus, dias mais tarde, decidimos por nos recolher para não levantar suspeita, pensei em lhe dizer o que me ocorrera, tinha medo de que ela não compreendesse, sentia-me incapaz de tomar as rédeas de algo, mas não resisti. Para minha surpresa ela me respondeu “eu admiro sua decência, mas até quando este grito ficará entalado em nossa garganta?”. Conversamos durante dias, sempre escondidos próximo ao criadouro de gansos, por ser um lugar afastado. Até que um dia um soldado nos avistou e se aproximou rapidamente, já empunhando uma espada e nos ordenando a voltar para o trabalho. A sensação de que algo dentro de mim explodiria voltou, Vênus segurou forte em minha mão, ela sentia o mesmo que eu. Esperei. O homem se aproximou e levantou a espada, empunhando-a fortemente, senti que nos mataria, então joguei me contra ele, tão logo o acertei com meu ombro, percebi que Vênus também o atacara segurando pelas pernas, o guarda, por sua vez caiu e bateu fortemente a cabeça contra o chão, parecia morto. Logo escondemos o corpo do homem, bem como sua espada, pensava que estivesse fazendo algo errado, mas ao mesmo tempo não sentia culpa, então parei e olhei nos olhos de Vênus que, ainda com a respiração agitada, expressava algo inexplicável, e era tão agradável quanto ao que sentia pulsando dentro de mim.

Voltamos a nossos afazeres o mais rápido possível e cuidando para que nada transparecesse, sentia-me bem, mas algo me dizia que mais ainda viria. Tão cedo o sol mostrou-se no horizonte, eu avistei o soldado que havíamos atacado, que cambaleando com a mão na cabeça gritava, repetidas vezes, “fui atacado!”. Em pouco tempo mais guardas o acudiram e o levaram para dentro, Vênus correu em minha direção e me arrastou pela mão, seus olhos mostravam brilho e vida, ela então me disse: “Vivamos enquanto for possível e que isso seja infinito enquanto dure!”. Imediatamente proferidas suas palavras e, ainda com uma força irradiante em meu peito, o sino que chama todos os escravos foi soado, juntamente com gritos e movimentação dos soldados, os senhores queriam todos reunidos.

Caminhando em direção ao local do sino, parei, senti o vento em minha face, respirei profundamente, senti todos meus desejos, sonhos e esperança, então levantei a cabeça e me aproximei encarando todos os soldados, bem como o Senhor. Percebi que somente eu e Vênus estávamos com a cabeça erguida, lutava arduamente para mantê-la assim. Uma vez todos reunidos, o senhor começou seu discurso:

“Ingratidão! Essa é a palavra vos digo, eu os alimento e os trato bem, para que? Para atacarem um de meus homens? Agredir um de meus homens é agredir a mim. Matem os culpados!”.

Dois soldados me pegaram violentamente e me jogaram de joelhos, um deles desembainho a espada, enquanto isso, em um movimento brusco, Vênus se libertou dos soldados que a seguravam, puxou uma espada debaixo de seu manto e a jogou para mim. Antes que a espada do soldado descesse, a minha subiu contra seu ventre, então me levantei e encarei o outro, que assustado recuou, senti um uníssono de todas as cabeças se erguerem, imediatamente todos correram para cima dos soldados, temerários, derrubando um a um e incendiando tudo o que restava.

Pegamos coisas necessárias para sobrevivermos e rumamos para as montanhas, estacionamos em um vale, que parecia seguro, ainda tinha água e era protegido por diversas arvores e pedras. Rapidamente construímos um acampamento. Precisávamos conhecer o caminho, para nossa segurança precisávamos chegar em terras longe do domínio do império, então mandamos batedores para descobrir onde estávamos. Tínhamos que esperar.

Ficamos em paz, observávamos as estrelas, o nascer e o por do sol, cantávamos e dançávamos, as boas companhias voltaram, principalmente ao lado de Vênus, nos deliciávamos em longas conversas, momentos especiais, inclusive algumas discussões, trocávamos olhares, palavras, partilhávamos o mesmo sentimento, intenso, como se minhas preces tivessem sido ouvidas, como se estar com ela fosse uma comprovação de que, quer seja além das montanhas que delineiam o horizonte, quer seja acima das nuvens, alguém me ouviu. Ali, com ela aprendi a viver, não só a sentir e pensar, a fazer parte de minha própria história, como se esse acampamento fosse uma faceta em separado do mundo, um lugar nos sonhos, digo isso, pois sabia que não ficaríamos ali para sempre, nos questionávamos se o que estávamos fazendo era certo, se valia arriscar tanto, isso muitas vezes nos deixava confusos, mas preferimos continuar ali, pois que seja eterno enquanto dure!

Em uma tarde, um dos batedores voltou, noticiando que atrás do vale há uma planície que da caminho ao território fora do império, porém um destacamento de soldados se posicionou impedindo a passagem. Nos reunimos e decidimos por deixá-los se movimentar por um tempo, talvez não nos tenham notado, talvez só estivessem treinando manobras, mesmo assim nos equipamos com as armas e armaduras que conseguimos da guarnição do antigo senho. Poucos dias mais tarde, percebemos que os soldados sabiam de nosso acampamento e estavam determinados a acabar com ele, defenderíamos nosso território à qualquer custo. Para tanto erguemos muros com arvores, e lanças afiadas apontadas para o avançar dos soldados. –Se estávamos prontos para suprimir a situação, se estávamos confiantes, não sei, mas tínhamos esse desejo, de que as coisas acabassem da melhor forma possível, éramos homens a realizar nossos sonhos e dispostos a lutar por eles.

O dia amanheceu cinzento, havia desespero e confiança nos olhos dos homens, que foi intensificado quando avistaram o destacamento, com suas flâmulas, toda sua coerência em movimento, como se nada pudesse detê-los, então tudo aquilo que acreditávamos foi posto à prova, tudo aquilo que vivemos foi posto a prova, estávamos em duvida, o momento ante a batalha nos colocou à prova, talvez mais do que a batalha em si colocaria. Então que surgiram homens prontos a liderar, que se ergueram apoiados em discursos de coragem, cada um inspirados por usa própria convicção, com sua própria crença. Dentre eles, Vênus, que proferiu as palavras motivadoras que me acalmaram e me fizeram pensar: “Eu não quero chegar em meu leito de morte e desejar voltar no tempo para fazer algo que não fiz”. Levantei-me, coloquei meu elmo e minhas luvas, fechei meus olhos e olhei para o passado, calmamente, por um instante e notei que não, não me arrependo de nada que fiz, agora chegou a hora de ir em frente e dar face à batalha, tema o que temer, doa o que doer.

Com um gesto do comandante, o destacamento desceu bravamente o sopé da montanha, se chocando com os muros e as lanças que logo cederam, o combate havia começado. Movimentava-me com esforço, com convicção, ficava cada vez mais confiante, pois minha armadura suportava meus erros e imprecisões. O combate avançava tenso, por vezes avistava Vênus, queria lutar ao seu lado, mas estávamos em grupos diferentes. Lutei até o fim de minhas forças, meu corpo todo tremia, então caí, a armadura me sufocava, seu peso era mais do que poderia carregar, então o que era proteção me deixou a mercê, parei de lutar, caído, olhando o céu, senti que ele queria me dizer algo, não conseguia ouvi-lo, não ouvia nada, decidi livrar-me da armadura, e com muito pesar abandonei-a, peça por peça, sentia-me mais frágil, porém mais livre. Tentei novamente ouvir o que as nuvens queriam me dizer, pedia uma direção, estava perdido, não sabia mais para que lado avançar, então ergui minha mão tentando alcançá-las, foi quando Vênus passou rapidamente, agarrou-a e me ergueu subitamente.

Não sei de ‘onde’, não sei ‘como’ e apenas desconfio ‘por que’, mas minhas forças voltaram, continuei lutando, agilmente, graciosamente deslizávamos por dentre os soldados, mas quando percebi que Vênus estava ferida, vi-me tomado por uma convicção em protegê-la, então investi poderosamente contra qualquer uma que tentasse se aproximar dela, golpeei tantas vezes que, nem sabia mais contra que estava lutando, lembro-me vagamente de ter atingido alguns aliados, em pouco tempo fiquei esgotado e confuso, havia tirado vidas desnecessárias, de repente os motivos pelos quais lutava ficaram nebulosos, não a sentia mais ao meu lado, de repente, meu único objetivo nesta batalha era protegê-la, ao mesmo tempo percebi que não queria mais que avançássemos, por medo de perdê-la. Estava machucado e cansado, não conseguia mais distinguir contra quem lutava, precisava parar.

Quando me dei conta, não conseguia dar mais nem um passo, minhas pernas não me agüentavam, olhei Vênus avançando, não podia acompanhá-la, estava preso a ela, então lagrimas começaram a saltar de meus olhos e uma tranqüila voz sussurrou em meu ouvido “Deixe-a ir! Liberte-a!”, então eu repeti com muito pesar “Tem razão, deixe-a ir!”. Proferidas as palavras, tantas coisas me passaram pela cabeça que não consegui me mover, por mais que tentasse. Fiquei parado durante todo o final do combate, sentia um grande pesar, por outro lado algo incrível brotava dentro de mim, não sabia o que era, nem sabia se um dia descobriria, mas queria ficar ali, parado, pacientemente esperando.

Terminado o combate, voltei a caminhar pelo campo de batalha. Alguns feridos lutavam em se levantar, ajudados por companheiros de ambos os lados, avistei Vênus, sentada encostada em uma arvore, havia muito sangue em suas roupas, aproximei-me e lhe estendi a mão, ela me olhou, seus olhos transmitiam descobertas que jamais imaginava que faria, então eu me aproximei, abaixei e segurei sua mão, seus ferimentos eram muito profundos. Tantas palavras quantas estrelas no céu passaram por minha mente, mas só consegui lhe dizer “Eu me libertei!”. “Não, você libertou a todos nós!” ela respondeu em seu ultimo suspiro. Abracei-a fortemente e, por tudo que passamos, por tudo que aprendi, por tudo que vivi e do mais profundo eco de minha alma, gritei! Então novamente a voz tranqüila me disse “Deixe-a ir! Liberte-a!”. Essas foram minhas ultimas palavras nesse campo de batalha.

Hoje, do alto dessa montanha, olho o horizonte, as nuvens e vejo um novo mundo, e muito ainda a fazer, experimento cada momento como se fosse único. Estou empenhado em ajudar a construir um reino de liberdade e boas companhias, o que me conforta é saber que você já está nele e, mesmo que tão longe, sinto-a tão perto e sei que um dia nos encontraremos, para nunca mais ter que dizer adeus.
Escrito em Maio de 2006

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