O que mais me animava eram as festas das dezenas, onde todos os pescadores e produtores reuniam-se para trocar o fruto do trabalho e festejar a fartura. Nesses dias encontrava-me com alguns amigos para umas aventuras, hora em conversas fantasiosas sobre sonhos e desafios proíbidos, novas descobertas narradas com entusiasmo em volta do fogo e, hora na região, onde íamos muito à uma cachoeira que ficava a uns bons passos da vila Norte. Infelizmente, deles só tenho lembranças nebulosas, exceto de Pandora, ficamos bons amigos, pois tínhamos nascido no mesmo dia, do mesmo ano e, como muitos dos eventos, festas e cerimônias eram divididos por idade, sempre ficávamos juntos. Logo, conversávamos bastante, ela era como minha conselheira e eu a dela, nos distanciamos um pouco quando ela se casou, mas era sempre bom reencontrá-la.
A vida passava como uma calmaria, isso me prendia de alguma forma, como um barco sem velas e sem vento, sentia que estava
faltando algo, tinha que viver algo, sei lá, uma caça ao tesouro, como nas estórias para crianças, uma batalha pela sobrevivência como nas estórias do mundo velho. Precisava de algo, estava começando a me conformar quando, numa certa noite, ela veio, apareceu do mar, caminhou para mim, não sei o que era, era feminino e inspirava graça e tranqüilidade, ao mesmo tempo uma torrente de vida entrou dentro de mim, como a felicidade de mil crianças risonhas, ela dançava e segurava minha mão, dizia-me coisas que sempre quis ouvir, apesar de não entender uma palavra se quer, era bela como uma fada semeando a primavera. Finalmente havia achado, sentia que minha grande aventura começaria, mas, para meu desespero, era apenas um sonho, o qual acordara com um sorriso brilhante como o mar polvilhado de ouro. O encanto do sonho despedaçara-se na barreira da realidade, como se algo a impedisse de ser real e, junto, o sorriso foi, aos poucos, desfazendo-se, estava acordado. Nas próximas noites ia deitar empolgado, para que sonhasse novamente, mas era em vão, o sonho se fora e tudo estava como antes. Comecei a questionar, por que sonhei com isto? O que isso quer dizer? E muitos outros 'por ques' surgiram, buscava respostas para minha vida.
Meus pensamentos não paravam, não me deixavam, não conseguia atentar à nenhuma tarefa, havia respondido varias vezes de forma grosseira para Pandora, por me perguntar o que se passava comigo. Sentia-me pior ainda, até que resolvi contar, ela pacientemente ouviu, pegou em minha mão, olhou em meus olhos, como se fossem janelas do que havia por dentro, uma janela para meus segredos e disse “Não sei por que, nem sei como, mas você precisa alcançar esse sonho”, respondi que não sabia o que fazer, então completou “Olha, meu pai disse uma vez que somos como flores, nascemos, crescemos, mas é dada a hora de ir em frente, como este dente-de-leão, veja. Ele já nasceu, já viveu, agora está seco”. Pandora soprou o dente-de-leão que se desfez e voou para o alto e para longe, com o vento, sorriu para mim e disse “agora ele vai florescer em outro lugar”.
Não dormi as noites seguintes, meus pensamentos estavam em todos os lugares ao mesmo tempo, porém não caminhavam para lugar nenhum, sentia como se algo dentro de mim estivesse e quisesse explodir, minhas costelas doíam de tanto suspirar. Na quarta noite, ela visitou-me novamente, a fada dos sonhos, sempre misteriosa, nunca conseguia ver seu rosto, por mais que tentasse, fomos à dezena juntos, rimos e nos divertimos com todos, fomos à cachoeira e, mais uma vez acordei leve, porém momentos depois tudo voltou como era antes, e as perguntas, os pensamentos tomaram conta de mim, mais fortes do que nunca, estava perdido e não conseguia parar de pensar, de questionar.
Dias depois convenci-me que estava desligado demais, não fazia mais nada direito e nem havia ido à ultima dezena, estava tão dentro de mim que esquecera o mundo de fora, então inclinei-me no trabalho e por muitos dias pescava duas vezes mais que qualquer outro pescador, mesmo os mais experientes, até que um dia, estava pronto a lançar a primeira rede, quando ouvi um pedido de socorro vindo do mar proibido, fora das ilhas. Busquei com olhos e ouvidos atentos e avistei. Alguém estava se afogando, remei rápido em direção, avistei um garoto da vila, que lutava para manter-se na superfície. Felizmente cheguei a tempo de salvá-lo, recuperamos seu barco e esperamos um pouco para que ele se acalmasse, foi quando contou-me que havia sido pego por uma corrente e na tentativa de remar contra, caiu ao mar. Já estava pronto para virar o barco e voltar quando notei, junto ao sol nascente, alguém navegando no horizonte proibido, no mar aberto, fora do arquipélago. Meu coração disparou, minhas mãos tremiam, sentia meu corpo e meu rosto quente, brevemente refrescados pela brisa que desmanchava os cabelos. Imediatamente pedi para que o garoto voltasse para a ilha, virei o barco e remei com a voracidade de cinqüenta homens, ouvia o chamado do garoto, que me ordenava a voltar, cada vez mais baixo e logo fora pego pelas ondas, hora via o barco que perseguia, hora não o via, sentia a força de um javali correndo em meus braços, estava determinado a chegar, como se atendesse a um chamado.
Foi na descida de uma onda grande que, não sei como, meu barco fora arrancado debaixo de mim e bati violentamente contra algo duro, como uma rocha, mas não havia rocha nenhuma ali, acordei quando já estava afundando, consegui reunir forças para voltar à superfície, nadei até meu barco e tão logo equilibrei-me nele, avistei, algumas remadas a frente, algo, notei os cabelos negros lançados ao vento, os contornos finos e delicados como de uma dançarina, era uma garota parada sobre um barco, olhava-me fixamente nos olhos, ficamos parados como se contemplasse flores reluzentes ao pôr-do-sol. Fui tomado pela tranqüilidade, estava calmo, como nos primeiros raios de sol da manhã que dilaceram o frio solitário da noite instaurando as cores do dia. Novamente senti meu barco roçando, havia esbarrado em pedras ou corais, porém invisíveis, e impediam a passagem, me aproximei espalmei minha mão em algo transparente. Ela olhou-me, aproximou-se com seu barco e colocou sua mão sobre a minha e, mesmo separados por uma parede invisível, sentia seu calor, como se a tocasse. Então repentinamente, ela voltou-se para o mar sem fim e afastou-se remando rápido, momentos depois faço o mesmo, remando lentamente, cada segundo de nosso encontro passou diante meus olhos incontáveis vezes, sempre acompanhados por suspiros que alimentavam o mar a minha volta, a revolta do mar proibido não me amedrontava mais, senti como se estivesse num sonho. Na mesma noite fora visitado novamente, porém a fada tomou forma, consegui ver seu rosto, era a garota do barco. Caminhávamos pela vila, conversando alegremente sobre diversos assuntos, ao final do dia, nos despedimos e acordei com a sensação duradoura, esperei alguns momentos para ver se despedaçava-se como as demais, mas não ocorreu. Estava ai, havia achado o que faltara, como um sonho que se tornou realidade ela veio e encheu-me de vida, estava confuso e duvidoso se essas coisas poderiam acontecer, mas estava sentindo. A fada dos sonhos se revelara em forma, ou eu dei forma à fada a partir de algo que invadira-me como um sopro eternizante de alegria.
Na mesma manhã corri para a casa de Pandora, interrompi a refeição matinal e arranquei-a de casa, rapidamente contei o que aconteceu, estava pulsante e cintilante, meu corpo emanava esperança, o dia estava em cores fortes e via sorrisos onde quer que olhasse. Pandora ouviu-me com atenção, porém seu olhar era de quem não acreditava, minha suspeita se confirmou quando ela olhou para mim, respirou fundo, colocou a mão em meus ombros e disse calmamente “você tem se preocupado demais, tem pensado demais, pare de sonhar com o horizonte. Por que busca algo tão distante?”. O sentimento de descrença me invadiu como uma horda de demônios destruindo e queimando tudo, mais uma vez havia acordado, e tudo estava como sempre esteve, as cores se apagaram, os sorrisos se foram. Tudo voltara ao normal e a esperança pulsante em meu peito passou rapidamente a um desconforto, um peso sobre meus ombros.
Passei anos sem me preocupar mais com o que havia além do mar proibido, sonhava com ela às vezes, mas ao acordar pensava “isso foi só um sonho e nada mais”. Todas as noites andava pela vila, sentia vontade de fazer isso, como se estivesse procurando algo e, ao mesmo tempo me acalmando, escrevia algumas coisas que tinha vontade, estórias, poesias, fantansiava e vagava em pensamentos e passadas, sem rumos. Fiz planos, construí minha própria casa, meu próprio barco. Até que um dia, ouvindo conversas dos pescadores mais velhos, prestei atenção à uma estória sobre um lugar, além do horizonte, onde o sol brilhava forte e a fartura era muito grande, a terra prometida da liberdade, porém esse lugar era proibido para qualquer um, pois teríamos que atravessar o grande mar. Todos os outros caçoaram do contador de estórias dizendo que ele sonhava com algo impossível, que deveria destruir de uma vez por todas esse sonho, então o velho com suas brancas sobrancelhas grossas terminou dizendo que ”Todos os homens morrem mas nem todos de fato vivem, o homem pode perder suas terras, seus amigos, sua familia, sua vida, sua fé e até sua esperança mas o sonho, o sonho nunca morre, podemos abominá-lo, odiá-lo, execrá-lo mas nunca conseguiremos jogá-los ao vazio, à indiferença”. Olhou a todos à sua volta e completou "A função da formiga é carregar a folha, a da abelha é fazer o mel e a do homem, a do homem é sonhar. Um homem sem sonho, que jogou seus sonhos ao vazio, acorrenta-se ao mesmo vazio, até o derradeiro ou até que um novo sonho brote das cinzas como os passáros de chamas". Era exatamente como me sentia, preso a ferro.
Na mesma noite sonhei com a garota, sonhei que ela me segurava nos braços, e que todo o desespero que sentia antes havia passado. Acordei, preparei o barco, peguei meu melhor conjunto de remos e lancei-me ao mar revolto, muitos pescadores me seguiram, ordenando que voltasse, suas vozes grossas geravam os mais temíveis alertas e sermões, ignorava-os e seguia em frente, até que me deparei com o velho senhor que contava estórias. Ele lançou-me um olhar investigativo, arqueando as sobrancelhas, franziu a testa e sorriu “siga teus sonhos garoto, sonhe-os e segure forte. Quando chegar a hora dê asas à luz, lance seu destino!”. Perguntei imediatamente "Por que devo acreditar nisso?", "Nem todas perguntas tem respostas. Você pode acreditar em teus sonhos ou esvaziar-se" Fui até a grande parede invisível, investiguei-a inúmeras remadas acima e abaixo, conclui que estávamos cercados por uma redoma de uma espécie de vidro, lancei meu remo o mais alto que consegui, ele sempre batia e voltava, era intransponível. Estava longe de casa, a única coisa que conseguia distinguir eram as enormes pedras brancas do alto da grande ilha central.
Vaguei para cima e para baixo a noite toda, buscando, pensando, planejando alguma forma de sair, alguma forma de entender o que era aquilo, onde morávamos? Por que haviam nos cercado? O que havia do lado de fora? Porque estava fazendo desafiando todas as ordens dos mais velhos? Afinal nem mesmo sabia seu nome, tudo o que me recordava era de seu sorriso leve, puro e sentia que, só pelo fato de vê-lo, ousava a acreditar novamente. As perguntas eram tantas que me perdi em pensamentos profundos e inquietos.
Acordei com uma trepidação do mar à minha volta, ela crescia como se fosse sair do mar algo grande, temia como se fosse me engolir, fiquei tenso, apreensivo, não sabia o que fazer, equilibrei-me no barco com os remos em punho, pronto para lutar, estava ofegante e sentia o suor escorrendo por minha face. Avistei, alguns metros abaixo, algo grande e verde aproximando-se rapidamente de mim, logo emergiu como um peixe enorme, agitando a água, lançando ondas que fizeram meu barco tombar, assim que caí no mar algo me envolvera como uma rede, imediatamente fui içado para cima da coisa, quanto mais me debatia, mais me enrolava, o pescador fora feito pesca.
De dentro da coisa saíram homens estranhos, vestiam preto e seus rostos expressavam seriedade, como se tivesse transgredidos revelando segredos proibidos. Eles me seguraram fortemente pelos braços, falavam coisas que não entendia, levaram-me para dentro da coisa, haviam varias coisas cintilantes lá, e muitos mais deles.
Fiquei alguns instantes ajoelhado feito um doente, subjulgado, caçado, foi quando um deles aproximou-se, os outros mostraram respeito. Levantou-me pelos ombros, ergueu meu queixo proferiu palavras incompreensíveis, virou-se e disse “você quase conseguiu”. A frase fez com que minhas pernas tremessem, ao mesmo tempo senti-me forte, joguei um deles em cima do outro, agarrando-os pelo colarinho, peguei o terceiro pelo pescoço e arremessei-o com toda minha convicção dentro de uma das salas próximas, corri como nunca havia corrido, subi novamente as escadas e saí. Notei que a coisa avançava rapidamente, em direção ao meu barco, que estava travado pela parede de vidro, com um estrondo causado pelo impacto, meu barco partiu-se em inúmeras partes. Fui lançado para frente, segurei firme para que não fosse ao mar novamente, pois seria pego facilmente, levantei, virei e preparei para combater o que quer que saísse dali.
Eles saíram aos pares, eram doze no total, começaram a rodear-me e proferir as palavras malditas e incompreensíveis, fiquei pronto para me defender caso fizessem qualquer movimento em falso, o ar estava tenso, quase conseguia palpá-lo, estava quente e abafado, ouvia meu coração pulsando como tambores. A tensão irrompeu com um estrondo que acompanhou uma lufada de vento que passou por mim como milhares de vozes no calor de uma batalha, o vento vinha da ilha em direção à barreira de vidro, senti que havia chegado minha hora, a carapaça fora quebrada. Nesse momento os doze avançaram, os vi em movimentos lentos, sentia suas intenções e sabia para onde tinha que ir, caso contrário seria preso de uma vez por todas, então mergulhei sem hesitação, impulsionado pela esperança que acelerava meu coração todas as noites quando sonhava, pulei para a barreira que me prendia, para fora da redoma de meus sonhos. O dente-de-leão fora soprado, um lado meu sabia que não sobreviveria, porém sentia que se acreditasse, a barreira de vidro não existiria. Lancei-me ao destino e ao mar, era hora de renascer em outro lugar.
- E o que aconteceu vovô?
- Hahaha! Ai você já sabe, eu já lhe contei, você lembra?
- Sim, foi ai que a vovó te achou boiando no mar e vocês se apaixonaram?
- Exato, exato, foi isso mesmo, foi ai que segui meu destino e encontrei minha felicidade, onde quer que ela estivesse.
- As pessoas lá da redoma não são felizes?
- São sim, mas lá não era meu lugar.
- Se é feliz aqui, por que as vezes briga com a vovó?
- Haha Isso é outra estória, mas, o que posso lhe dizer é que isso jamais me impediu de ser feliz ao lado dela.
"O sonho representa a manifestação do ideal de felicidade e crescimento"
Escrito em Novembro de 2006