Sunday, November 05, 2006

O Pescador de Sonhos (revisado)

O sol apontava no horizonte, percorria as ondas refletindo como se fosse pó de ouro espalhado ao vento ondulante da enseada, aquecendo a areia branca, entrando pela janela, refletindo no espelho e, sempre no mesmo horário, me acordava. Todos os dias, cada vez mais, sentia um vazio, pesado como uma carapaça invisível que tivera, um dia, de carregar, que prendia-me. Os tempos de pescaria eram divertidos, meu pai entretia-me com o balançar da canoa, tentando me derrubar. Até o dia que o infortúnio, o misterioso sorrateiro dos mares o levou, desde então a vida foi, pouco a pouco, se esvaído de nossa casa, as risadas e a cantoria ao jantar eram raras e cada vez o barco, as redes ficavam mais pesadas e os peixes sem gosto, sentia-me como um dente-de-leão seco.

O que mais me animava eram as festas das dezenas, onde todos os pescadores e produtores reuniam-se para trocar o fruto do trabalho e festejar a fartura. Nesses dias encontrava-me com alguns amigos para umas aventuras, hora em conversas fantasiosas sobre sonhos e desafios proíbidos, novas descobertas narradas com entusiasmo em volta do fogo e, hora na região, onde íamos muito à uma cachoeira que ficava a uns bons passos da vila Norte. Infelizmente, deles só tenho lembranças nebulosas, exceto de Pandora, ficamos bons amigos, pois tínhamos nascido no mesmo dia, do mesmo ano e, como muitos dos eventos, festas e cerimônias eram divididos por idade, sempre ficávamos juntos. Logo, conversávamos bastante, ela era como minha conselheira e eu a dela, nos distanciamos um pouco quando ela se casou, mas era sempre bom reencontrá-la.

A vida passava como uma calmaria, isso me prendia de alguma forma, como um barco sem velas e sem vento, sentia que estava faltando algo, tinha que viver algo, sei lá, uma caça ao tesouro, como nas estórias para crianças, uma batalha pela sobrevivência como nas estórias do mundo velho. Precisava de algo, estava começando a me conformar quando, numa certa noite, ela veio, apareceu do mar, caminhou para mim, não sei o que era, era feminino e inspirava graça e tranqüilidade, ao mesmo tempo uma torrente de vida entrou dentro de mim, como a felicidade de mil crianças risonhas, ela dançava e segurava minha mão, dizia-me coisas que sempre quis ouvir, apesar de não entender uma palavra se quer, era bela como uma fada semeando a primavera. Finalmente havia achado, sentia que minha grande aventura começaria, mas, para meu desespero, era apenas um sonho, o qual acordara com um sorriso brilhante como o mar polvilhado de ouro. O encanto do sonho despedaçara-se na barreira da realidade, como se algo a impedisse de ser real e, junto, o sorriso foi, aos poucos, desfazendo-se, estava acordado. Nas próximas noites ia deitar empolgado, para que sonhasse novamente, mas era em vão, o sonho se fora e tudo estava como antes. Comecei a questionar, por que sonhei com isto? O que isso quer dizer? E muitos outros 'por ques' surgiram, buscava respostas para minha vida.

Meus pensamentos não paravam, não me deixavam, não conseguia atentar à nenhuma tarefa, havia respondido varias vezes de forma grosseira para Pandora, por me perguntar o que se passava comigo. Sentia-me pior ainda, até que resolvi contar, ela pacientemente ouviu, pegou em minha mão, olhou em meus olhos, como se fossem janelas do que havia por dentro, uma janela para meus segredos e disse “Não sei por que, nem sei como, mas você precisa alcançar esse sonho”, respondi que não sabia o que fazer, então completou “Olha, meu pai disse uma vez que somos como flores, nascemos, crescemos, mas é dada a hora de ir em frente, como este dente-de-leão, veja. Ele já nasceu, já viveu, agora está seco”. Pandora soprou o dente-de-leão que se desfez e voou para o alto e para longe, com o vento, sorriu para mim e disse “agora ele vai florescer em outro lugar”.

Não dormi as noites seguintes, meus pensamentos estavam em todos os lugares ao mesmo tempo, porém não caminhavam para lugar nenhum, sentia como se algo dentro de mim estivesse e quisesse explodir, minhas costelas doíam de tanto suspirar. Na quarta noite, ela visitou-me novamente, a fada dos sonhos, sempre misteriosa, nunca conseguia ver seu rosto, por mais que tentasse, fomos à dezena juntos, rimos e nos divertimos com todos, fomos à cachoeira e, mais uma vez acordei leve, porém momentos depois tudo voltou como era antes, e as perguntas, os pensamentos tomaram conta de mim, mais fortes do que nunca, estava perdido e não conseguia parar de pensar, de questionar.

Dias depois convenci-me que estava desligado demais, não fazia mais nada direito e nem havia ido à ultima dezena, estava tão dentro de mim que esquecera o mundo de fora, então inclinei-me no trabalho e por muitos dias pescava duas vezes mais que qualquer outro pescador, mesmo os mais experientes, até que um dia, estava pronto a lançar a primeira rede, quando ouvi um pedido de socorro vindo do mar proibido, fora das ilhas. Busquei com olhos e ouvidos atentos e avistei. Alguém estava se afogando, remei rápido em direção, avistei um garoto da vila, que lutava para manter-se na superfície. Felizmente cheguei a tempo de salvá-lo, recuperamos seu barco e esperamos um pouco para que ele se acalmasse, foi quando contou-me que havia sido pego por uma corrente e na tentativa de remar contra, caiu ao mar. Já estava pronto para virar o barco e voltar quando notei, junto ao sol nascente, alguém navegando no horizonte proibido, no mar aberto, fora do arquipélago. Meu coração disparou, minhas mãos tremiam, sentia meu corpo e meu rosto quente, brevemente refrescados pela brisa que desmanchava os cabelos. Imediatamente pedi para que o garoto voltasse para a ilha, virei o barco e remei com a voracidade de cinqüenta homens, ouvia o chamado do garoto, que me ordenava a voltar, cada vez mais baixo e logo fora pego pelas ondas, hora via o barco que perseguia, hora não o via, sentia a força de um javali correndo em meus braços, estava determinado a chegar, como se atendesse a um chamado.

Foi na descida de uma onda grande que, não sei como, meu barco fora arrancado debaixo de mim e bati violentamente contra algo duro, como uma rocha, mas não havia rocha nenhuma ali, acordei quando já estava afundando, consegui reunir forças para voltar à superfície, nadei até meu barco e tão logo equilibrei-me nele, avistei, algumas remadas a frente, algo, notei os cabelos negros lançados ao vento, os contornos finos e delicados como de uma dançarina, era uma garota parada sobre um barco, olhava-me fixamente nos olhos, ficamos parados como se contemplasse flores reluzentes ao pôr-do-sol. Fui tomado pela tranqüilidade, estava calmo, como nos primeiros raios de sol da manhã que dilaceram o frio solitário da noite instaurando as cores do dia. Novamente senti meu barco roçando, havia esbarrado em pedras ou corais, porém invisíveis, e impediam a passagem, me aproximei espalmei minha mão em algo transparente. Ela olhou-me, aproximou-se com seu barco e colocou sua mão sobre a minha e, mesmo separados por uma parede invisível, sentia seu calor, como se a tocasse. Então repentinamente, ela voltou-se para o mar sem fim e afastou-se remando rápido, momentos depois faço o mesmo, remando lentamente, cada segundo de nosso encontro passou diante meus olhos incontáveis vezes, sempre acompanhados por suspiros que alimentavam o mar a minha volta, a revolta do mar proibido não me amedrontava mais, senti como se estivesse num sonho. Na mesma noite fora visitado novamente, porém a fada tomou forma, consegui ver seu rosto, era a garota do barco. Caminhávamos pela vila, conversando alegremente sobre diversos assuntos, ao final do dia, nos despedimos e acordei com a sensação duradoura, esperei alguns momentos para ver se despedaçava-se como as demais, mas não ocorreu. Estava ai, havia achado o que faltara, como um sonho que se tornou realidade ela veio e encheu-me de vida, estava confuso e duvidoso se essas coisas poderiam acontecer, mas estava sentindo. A fada dos sonhos se revelara em forma, ou eu dei forma à fada a partir de algo que invadira-me como um sopro eternizante de alegria.

Na mesma manhã corri para a casa de Pandora, interrompi a refeição matinal e arranquei-a de casa, rapidamente contei o que aconteceu, estava pulsante e cintilante, meu corpo emanava esperança, o dia estava em cores fortes e via sorrisos onde quer que olhasse. Pandora ouviu-me com atenção, porém seu olhar era de quem não acreditava, minha suspeita se confirmou quando ela olhou para mim, respirou fundo, colocou a mão em meus ombros e disse calmamente “você tem se preocupado demais, tem pensado demais, pare de sonhar com o horizonte. Por que busca algo tão distante?”. O sentimento de descrença me invadiu como uma horda de demônios destruindo e queimando tudo, mais uma vez havia acordado, e tudo estava como sempre esteve, as cores se apagaram, os sorrisos se foram. Tudo voltara ao normal e a esperança pulsante em meu peito passou rapidamente a um desconforto, um peso sobre meus ombros.

Passei anos sem me preocupar mais com o que havia além do mar proibido, sonhava com ela às vezes, mas ao acordar pensava “isso foi só um sonho e nada mais”. Todas as noites andava pela vila, sentia vontade de fazer isso, como se estivesse procurando algo e, ao mesmo tempo me acalmando, escrevia algumas coisas que tinha vontade, estórias, poesias, fantansiava e vagava em pensamentos e passadas, sem rumos. Fiz planos, construí minha própria casa, meu próprio barco. Até que um dia, ouvindo conversas dos pescadores mais velhos, prestei atenção à uma estória sobre um lugar, além do horizonte, onde o sol brilhava forte e a fartura era muito grande, a terra prometida da liberdade, porém esse lugar era proibido para qualquer um, pois teríamos que atravessar o grande mar. Todos os outros caçoaram do contador de estórias dizendo que ele sonhava com algo impossível, que deveria destruir de uma vez por todas esse sonho, então o velho com suas brancas sobrancelhas grossas terminou dizendo que ”Todos os homens morrem mas nem todos de fato vivem, o homem pode perder suas terras, seus amigos, sua familia, sua vida, sua fé e até sua esperança mas o sonho, o sonho nunca morre, podemos abominá-lo, odiá-lo, execrá-lo mas nunca conseguiremos jogá-los ao vazio, à indiferença”. Olhou a todos à sua volta e completou "A função da formiga é carregar a folha, a da abelha é fazer o mel e a do homem, a do homem é sonhar. Um homem sem sonho, que jogou seus sonhos ao vazio, acorrenta-se ao mesmo vazio, até o derradeiro ou até que um novo sonho brote das cinzas como os passáros de chamas". Era exatamente como me sentia, preso a ferro.

Na mesma noite sonhei com a garota, sonhei que ela me segurava nos braços, e que todo o desespero que sentia antes havia passado. Acordei, preparei o barco, peguei meu melhor conjunto de remos e lancei-me ao mar revolto, muitos pescadores me seguiram, ordenando que voltasse, suas vozes grossas geravam os mais temíveis alertas e sermões, ignorava-os e seguia em frente, até que me deparei com o velho senhor que contava estórias. Ele lançou-me um olhar investigativo, arqueando as sobrancelhas, franziu a testa e sorriu “siga teus sonhos garoto, sonhe-os e segure forte. Quando chegar a hora dê asas à luz, lance seu destino!”. Perguntei imediatamente "Por que devo acreditar nisso?", "Nem todas perguntas tem respostas. Você pode acreditar em teus sonhos ou esvaziar-se" Fui até a grande parede invisível, investiguei-a inúmeras remadas acima e abaixo, conclui que estávamos cercados por uma redoma de uma espécie de vidro, lancei meu remo o mais alto que consegui, ele sempre batia e voltava, era intransponível. Estava longe de casa, a única coisa que conseguia distinguir eram as enormes pedras brancas do alto da grande ilha central.

Vaguei para cima e para baixo a noite toda, buscando, pensando, planejando alguma forma de sair, alguma forma de entender o que era aquilo, onde morávamos? Por que haviam nos cercado? O que havia do lado de fora? Porque estava fazendo desafiando todas as ordens dos mais velhos? Afinal nem mesmo sabia seu nome, tudo o que me recordava era de seu sorriso leve, puro e sentia que, só pelo fato de vê-lo, ousava a acreditar novamente. As perguntas eram tantas que me perdi em pensamentos profundos e inquietos.

Acordei com uma trepidação do mar à minha volta, ela crescia como se fosse sair do mar algo grande, temia como se fosse me engolir, fiquei tenso, apreensivo, não sabia o que fazer, equilibrei-me no barco com os remos em punho, pronto para lutar, estava ofegante e sentia o suor escorrendo por minha face. Avistei, alguns metros abaixo, algo grande e verde aproximando-se rapidamente de mim, logo emergiu como um peixe enorme, agitando a água, lançando ondas que fizeram meu barco tombar, assim que caí no mar algo me envolvera como uma rede, imediatamente fui içado para cima da coisa, quanto mais me debatia, mais me enrolava, o pescador fora feito pesca.

De dentro da coisa saíram homens estranhos, vestiam preto e seus rostos expressavam seriedade, como se tivesse transgredidos revelando segredos proibidos. Eles me seguraram fortemente pelos braços, falavam coisas que não entendia, levaram-me para dentro da coisa, haviam varias coisas cintilantes lá, e muitos mais deles.

Fiquei alguns instantes ajoelhado feito um doente, subjulgado, caçado, foi quando um deles aproximou-se, os outros mostraram respeito. Levantou-me pelos ombros, ergueu meu queixo proferiu palavras incompreensíveis, virou-se e disse “você quase conseguiu”. A frase fez com que minhas pernas tremessem, ao mesmo tempo senti-me forte, joguei um deles em cima do outro, agarrando-os pelo colarinho, peguei o terceiro pelo pescoço e arremessei-o com toda minha convicção dentro de uma das salas próximas, corri como nunca havia corrido, subi novamente as escadas e saí. Notei que a coisa avançava rapidamente, em direção ao meu barco, que estava travado pela parede de vidro, com um estrondo causado pelo impacto, meu barco partiu-se em inúmeras partes. Fui lançado para frente, segurei firme para que não fosse ao mar novamente, pois seria pego facilmente, levantei, virei e preparei para combater o que quer que saísse dali.

Eles saíram aos pares, eram doze no total, começaram a rodear-me e proferir as palavras malditas e incompreensíveis, fiquei pronto para me defender caso fizessem qualquer movimento em falso, o ar estava tenso, quase conseguia palpá-lo, estava quente e abafado, ouvia meu coração pulsando como tambores. A tensão irrompeu com um estrondo que acompanhou uma lufada de vento que passou por mim como milhares de vozes no calor de uma batalha, o vento vinha da ilha em direção à barreira de vidro, senti que havia chegado minha hora, a carapaça fora quebrada. Nesse momento os doze avançaram, os vi em movimentos lentos, sentia suas intenções e sabia para onde tinha que ir, caso contrário seria preso de uma vez por todas, então mergulhei sem hesitação, impulsionado pela esperança que acelerava meu coração todas as noites quando sonhava, pulei para a barreira que me prendia, para fora da redoma de meus sonhos. O dente-de-leão fora soprado, um lado meu sabia que não sobreviveria, porém sentia que se acreditasse, a barreira de vidro não existiria. Lancei-me ao destino e ao mar, era hora de renascer em outro lugar.

- E o que aconteceu vovô?
- Hahaha! Ai você já sabe, eu já lhe contei, você lembra?
- Sim, foi ai que a vovó te achou boiando no mar e vocês se apaixonaram?
- Exato, exato, foi isso mesmo, foi ai que segui meu destino e encontrei minha felicidade, onde quer que ela estivesse.
- As pessoas lá da redoma não são felizes?
- São sim, mas lá não era meu lugar.
- Se é feliz aqui, por que as vezes briga com a vovó?
- Haha Isso é outra estória, mas, o que posso lhe dizer é que isso jamais me impediu de ser feliz ao lado dela.
"O sonho representa a manifestação do ideal de felicidade e crescimento"
Escrito em Novembro de 2006
À Caçadora Infatigável e Senhora dos Selvagens

Quando duas almas se encontram
Elas constroem, planejam, sonham...
Mas, com o tempo
As construções caem
Os planos falham
Os sonhos se esfarelam
e tudo cai no natural esquecimento
A não ser que exista ALGO que os eternize

Existe uma estaca de gelo
Sinto o sangue
O que a razão flui o coração condena
O lago brilhante está seco novamente
Ainda há esperança

Um dia, espero poder sair à luz, para tanto,
fico tecendo e esperando
Pois, de repente, vivo à penumbra de meus sonhos
Mascarando-me, escondendo-me
Tenho medo de esquecer, de voltar ao escuro
Com essa luz, o que era semente, nasceu
Deixe viver, deixe crescer
Mas jamais deixe morrer
não de novo...

Ter o céu como os pássaros o têm
Ter a terra como as arvores a têm
Sonhar como as crianças o fazem
Ter a Luz como as fadas à têm
Fadas, eu acredito em fadas, ou
prefiro acreditar, para as vezes, continuar sorrindo
Só assim tenho forças para continuar lutando,
Para um dia, ter meu abrigo sob a luz das fadas,
que nunca revelam seus rostos em sonhos,
Nunca, até que convenha, até que se tenha valor.
Seus rostos revelam a luz verdadeira.

Eles dizem para confiar,
Dizem para acreditar,
O sonho vai se realizar
Hoje eu me deparei com meu desespero,
Olhei em seus olhos, pensei que desmoronaria,
Mas vi que meu desespero era a duvida
A insegurança é minha fraqueza
No silêncio, minhas armas e,
no segredo, minha esperança

Às vezes me sinto como um desses sábios
que iluminou a humanidade
Transformando doença em vitalidade
fraqueza em força
A loucura em determinação
e as vezes me sinto como um de seus assassinos
usurpando e usando a força alheia,
para a minha própria.

Meus desejos inquietam-me
me arrancam de minha sanidade
contradizem meus planos
esfarelam meu sonho
Minam minhas construções
Mas agora, o tempo e os anjos me disseram
"não há mais retorno
Esperar é sábio e
vai fortalecer teus sonhos,
teus planos e tuas construções
Em sua felicidade moram as respostas
Siga o que foi dito".

Outrora comemorava minhas vitórias
Agora sofro com minha derrota
Assim como as vitórias são passageiras
as derrotas também
O sonho, nesse caso, representa a inquietação
a vitória ou a derrota definitiva
Permanente

Então, iguala-se somente o nome,
corta-se as pontas, une-se os primórdios,
Eis a razão aliada à emoção.
a esperança, a luz verdadeira,
o rosto da fada, a vitória definitiva
o sonho, o triunfo.
Mas, aconteça o que acontecer, mais que nunca,
eu sei, eu sei que estou vivo!


Escrito em Janeiro-fevereiro de 2006
Para nunca mais dizer adeus

A grande perseguição persistia, enquanto Nero festejava e banqueteava nos ilustres palácios e templos, aqueles com crenças “impróprias” eram massacrados, obrigados a viver em fuga ou em cativeiros, trancafiados, expostos a trabalhos que alimentavam as bocas daqueles que nos perseguiam. Ainda me lembro do tempo em que podíamos cultivar a terra, desfrutar o bom vinho, pão e a boa música ao lado de nossos mais adoráveis companheiros, até o contemplar de um novo dia surgindo. Também me lembro de como amaldiçoei o dia em que resolvi viver próximo à Maravilhosa Cidade, o dia em que a perseguição foi declarada, minha liberdade foi ceifada como o trigo, o dia em que as adoráveis companhias se foram, levadas por correntes, laminas ou lanças, lhes disse adeus, quando não queria e, sonhos inspirados no passado e no futuro, alimentavam ao mesmo tempo lagrimas e esperança.

Meus dias são cansados, trabalho após trabalho, como se fossem intermináveis e estivesse preso em um ciclo de servidão. Ao mesmo tempo, em breves momentos de lucidez, fico horrorizado, pois não me vejo mais como livre, olho me no reflexo da água e vejo um homem incapaz de ser livre, de desfrutar vinho e música com agradáveis companhias então sinto um vazio em meu peito, tão gélido como as correntes que me prendem todas noites, momentos de escuridão em que a única coisa que me conforta e me acompanha são conversas solitárias comigo mesmo, ou talvez para alguém que esteja além das montanhas que desenham o horizonte, ou acima das nuvens, sonhos que, ao contrário do que sei, não me motivam à caminhar, mas me impedem de regredir. Pedidos, desejos, preces inúmeras com toda a força e fé que me restam, principalmente de uma companhia especial, em não mais ter de dizer adeus, sonhos de liberdade.

Mais uma vez o sol irrompeu sobre a escuridão, delineando nuvens que eram apenas nuvens e o dourado do trigo era apenas dourado, foi quando avistei um carro guiado por bois e alguns soldados, “novos escravos”, pensei, pois se tratava de uma gaiola, com pessoas dentro e a grande maioria com a marca do peixe no braço, outros provavelmente criminosos ou inimigos de guerra. Fiquei parado olhando, um a um descer e se enfileirarem, homens e mulheres com olhares vazios, podia sentir suas esperanças se esvaindo pelas correntes que os prendem, observei cada rosto com calma, como se contemplasse o vazio em seus olhares semelhantes ao meu e entre si, exceto o de uma estranha jovem de cabelos longos e negros como a noite, seus olhos contemplavam algo misterioso, a ponto de ocupar minha mente por alguns dias, ficava me questionando “o que de tão misterioso ela carrega consigo?”, e a cada encontro nosso, mais ficava intrigado, mesmo com uma simples troca de olhares. Posteriormente descobri que seu nome é Vênus.

Por vezes nos era ordenado a carregar o trigo em carroças e trazê-lo até os silos, nesses momentos conversávamos, sobre muitos assuntos, sobre o passado, sobre sonhos e até segredos, sentia-me bem, pois conseguia lhe dizer e ouvir coisas que julgava privilégio de grandes homens ou do mundo dos sonhos, mesmo que em algumas delas não tinha forças para acreditar, isso ressoava fortemente em mim. Dessa forma Vênus passou, não só a povoar minha mente em conversas silenciosas a todo o momento de vigília, como meus sonhos, pensava e repensava inúmeras coisas a nosso respeito, sentia uma força crescendo dentro de mim, algo que estava despertando e sentia que os grilhões não seriam fortes o bastante para deter, mas tinha medo. Ao mesmo tempo sentia que minhas palavras a tocavam, assim como suas palavras me tocavam.

Assim que o sol se pôs, estava guardando as ferramentas, ouvi um tumulto, gritos de dor e de raiva vindos da casa dos senhores. Eu e outros corremos para ver do que se tratava, foi quando vi Titus, um dos escravos, deitado todo recolhido no chão e um dos soldados o espancava com uma vara de madeira, o soldado lhe dizia com raiva “Isso vai lhe ensinar a não roubar mais pão!”. A cena me perturbou, senti que meu peito explodiria, queria desentalar o grito que guardava a tanto tempo, enfrentar o soldado. Vacilantemente olhei do outro lado da confusão e vi Vênus, senti que estava com a mesma intenção que eu, mas também sabia que deveríamos tomar essa ação juntos, caso contrário, seria somente mais um a ser castigado, então hesitei, “eu sou apenas um fazendeiro, um servo não um assassino” pensei.

Minhas noites foram inquietas, depois do incidente, pensava inúmeras vezes se deveria ter reagido, andava para um lado e para outro, a cena se repetia em minha cabeça, fortemente marcada pelo olhar de Vênus, como se esperasse apenas eu dar um passo à frente para se juntar a mim, conseguia ler seus negros olhos, não eram mais misteriosos.

Conversando com Vênus, dias mais tarde, decidimos por nos recolher para não levantar suspeita, pensei em lhe dizer o que me ocorrera, tinha medo de que ela não compreendesse, sentia-me incapaz de tomar as rédeas de algo, mas não resisti. Para minha surpresa ela me respondeu “eu admiro sua decência, mas até quando este grito ficará entalado em nossa garganta?”. Conversamos durante dias, sempre escondidos próximo ao criadouro de gansos, por ser um lugar afastado. Até que um dia um soldado nos avistou e se aproximou rapidamente, já empunhando uma espada e nos ordenando a voltar para o trabalho. A sensação de que algo dentro de mim explodiria voltou, Vênus segurou forte em minha mão, ela sentia o mesmo que eu. Esperei. O homem se aproximou e levantou a espada, empunhando-a fortemente, senti que nos mataria, então joguei me contra ele, tão logo o acertei com meu ombro, percebi que Vênus também o atacara segurando pelas pernas, o guarda, por sua vez caiu e bateu fortemente a cabeça contra o chão, parecia morto. Logo escondemos o corpo do homem, bem como sua espada, pensava que estivesse fazendo algo errado, mas ao mesmo tempo não sentia culpa, então parei e olhei nos olhos de Vênus que, ainda com a respiração agitada, expressava algo inexplicável, e era tão agradável quanto ao que sentia pulsando dentro de mim.

Voltamos a nossos afazeres o mais rápido possível e cuidando para que nada transparecesse, sentia-me bem, mas algo me dizia que mais ainda viria. Tão cedo o sol mostrou-se no horizonte, eu avistei o soldado que havíamos atacado, que cambaleando com a mão na cabeça gritava, repetidas vezes, “fui atacado!”. Em pouco tempo mais guardas o acudiram e o levaram para dentro, Vênus correu em minha direção e me arrastou pela mão, seus olhos mostravam brilho e vida, ela então me disse: “Vivamos enquanto for possível e que isso seja infinito enquanto dure!”. Imediatamente proferidas suas palavras e, ainda com uma força irradiante em meu peito, o sino que chama todos os escravos foi soado, juntamente com gritos e movimentação dos soldados, os senhores queriam todos reunidos.

Caminhando em direção ao local do sino, parei, senti o vento em minha face, respirei profundamente, senti todos meus desejos, sonhos e esperança, então levantei a cabeça e me aproximei encarando todos os soldados, bem como o Senhor. Percebi que somente eu e Vênus estávamos com a cabeça erguida, lutava arduamente para mantê-la assim. Uma vez todos reunidos, o senhor começou seu discurso:

“Ingratidão! Essa é a palavra vos digo, eu os alimento e os trato bem, para que? Para atacarem um de meus homens? Agredir um de meus homens é agredir a mim. Matem os culpados!”.

Dois soldados me pegaram violentamente e me jogaram de joelhos, um deles desembainho a espada, enquanto isso, em um movimento brusco, Vênus se libertou dos soldados que a seguravam, puxou uma espada debaixo de seu manto e a jogou para mim. Antes que a espada do soldado descesse, a minha subiu contra seu ventre, então me levantei e encarei o outro, que assustado recuou, senti um uníssono de todas as cabeças se erguerem, imediatamente todos correram para cima dos soldados, temerários, derrubando um a um e incendiando tudo o que restava.

Pegamos coisas necessárias para sobrevivermos e rumamos para as montanhas, estacionamos em um vale, que parecia seguro, ainda tinha água e era protegido por diversas arvores e pedras. Rapidamente construímos um acampamento. Precisávamos conhecer o caminho, para nossa segurança precisávamos chegar em terras longe do domínio do império, então mandamos batedores para descobrir onde estávamos. Tínhamos que esperar.

Ficamos em paz, observávamos as estrelas, o nascer e o por do sol, cantávamos e dançávamos, as boas companhias voltaram, principalmente ao lado de Vênus, nos deliciávamos em longas conversas, momentos especiais, inclusive algumas discussões, trocávamos olhares, palavras, partilhávamos o mesmo sentimento, intenso, como se minhas preces tivessem sido ouvidas, como se estar com ela fosse uma comprovação de que, quer seja além das montanhas que delineiam o horizonte, quer seja acima das nuvens, alguém me ouviu. Ali, com ela aprendi a viver, não só a sentir e pensar, a fazer parte de minha própria história, como se esse acampamento fosse uma faceta em separado do mundo, um lugar nos sonhos, digo isso, pois sabia que não ficaríamos ali para sempre, nos questionávamos se o que estávamos fazendo era certo, se valia arriscar tanto, isso muitas vezes nos deixava confusos, mas preferimos continuar ali, pois que seja eterno enquanto dure!

Em uma tarde, um dos batedores voltou, noticiando que atrás do vale há uma planície que da caminho ao território fora do império, porém um destacamento de soldados se posicionou impedindo a passagem. Nos reunimos e decidimos por deixá-los se movimentar por um tempo, talvez não nos tenham notado, talvez só estivessem treinando manobras, mesmo assim nos equipamos com as armas e armaduras que conseguimos da guarnição do antigo senho. Poucos dias mais tarde, percebemos que os soldados sabiam de nosso acampamento e estavam determinados a acabar com ele, defenderíamos nosso território à qualquer custo. Para tanto erguemos muros com arvores, e lanças afiadas apontadas para o avançar dos soldados. –Se estávamos prontos para suprimir a situação, se estávamos confiantes, não sei, mas tínhamos esse desejo, de que as coisas acabassem da melhor forma possível, éramos homens a realizar nossos sonhos e dispostos a lutar por eles.

O dia amanheceu cinzento, havia desespero e confiança nos olhos dos homens, que foi intensificado quando avistaram o destacamento, com suas flâmulas, toda sua coerência em movimento, como se nada pudesse detê-los, então tudo aquilo que acreditávamos foi posto à prova, tudo aquilo que vivemos foi posto a prova, estávamos em duvida, o momento ante a batalha nos colocou à prova, talvez mais do que a batalha em si colocaria. Então que surgiram homens prontos a liderar, que se ergueram apoiados em discursos de coragem, cada um inspirados por usa própria convicção, com sua própria crença. Dentre eles, Vênus, que proferiu as palavras motivadoras que me acalmaram e me fizeram pensar: “Eu não quero chegar em meu leito de morte e desejar voltar no tempo para fazer algo que não fiz”. Levantei-me, coloquei meu elmo e minhas luvas, fechei meus olhos e olhei para o passado, calmamente, por um instante e notei que não, não me arrependo de nada que fiz, agora chegou a hora de ir em frente e dar face à batalha, tema o que temer, doa o que doer.

Com um gesto do comandante, o destacamento desceu bravamente o sopé da montanha, se chocando com os muros e as lanças que logo cederam, o combate havia começado. Movimentava-me com esforço, com convicção, ficava cada vez mais confiante, pois minha armadura suportava meus erros e imprecisões. O combate avançava tenso, por vezes avistava Vênus, queria lutar ao seu lado, mas estávamos em grupos diferentes. Lutei até o fim de minhas forças, meu corpo todo tremia, então caí, a armadura me sufocava, seu peso era mais do que poderia carregar, então o que era proteção me deixou a mercê, parei de lutar, caído, olhando o céu, senti que ele queria me dizer algo, não conseguia ouvi-lo, não ouvia nada, decidi livrar-me da armadura, e com muito pesar abandonei-a, peça por peça, sentia-me mais frágil, porém mais livre. Tentei novamente ouvir o que as nuvens queriam me dizer, pedia uma direção, estava perdido, não sabia mais para que lado avançar, então ergui minha mão tentando alcançá-las, foi quando Vênus passou rapidamente, agarrou-a e me ergueu subitamente.

Não sei de ‘onde’, não sei ‘como’ e apenas desconfio ‘por que’, mas minhas forças voltaram, continuei lutando, agilmente, graciosamente deslizávamos por dentre os soldados, mas quando percebi que Vênus estava ferida, vi-me tomado por uma convicção em protegê-la, então investi poderosamente contra qualquer uma que tentasse se aproximar dela, golpeei tantas vezes que, nem sabia mais contra que estava lutando, lembro-me vagamente de ter atingido alguns aliados, em pouco tempo fiquei esgotado e confuso, havia tirado vidas desnecessárias, de repente os motivos pelos quais lutava ficaram nebulosos, não a sentia mais ao meu lado, de repente, meu único objetivo nesta batalha era protegê-la, ao mesmo tempo percebi que não queria mais que avançássemos, por medo de perdê-la. Estava machucado e cansado, não conseguia mais distinguir contra quem lutava, precisava parar.

Quando me dei conta, não conseguia dar mais nem um passo, minhas pernas não me agüentavam, olhei Vênus avançando, não podia acompanhá-la, estava preso a ela, então lagrimas começaram a saltar de meus olhos e uma tranqüila voz sussurrou em meu ouvido “Deixe-a ir! Liberte-a!”, então eu repeti com muito pesar “Tem razão, deixe-a ir!”. Proferidas as palavras, tantas coisas me passaram pela cabeça que não consegui me mover, por mais que tentasse. Fiquei parado durante todo o final do combate, sentia um grande pesar, por outro lado algo incrível brotava dentro de mim, não sabia o que era, nem sabia se um dia descobriria, mas queria ficar ali, parado, pacientemente esperando.

Terminado o combate, voltei a caminhar pelo campo de batalha. Alguns feridos lutavam em se levantar, ajudados por companheiros de ambos os lados, avistei Vênus, sentada encostada em uma arvore, havia muito sangue em suas roupas, aproximei-me e lhe estendi a mão, ela me olhou, seus olhos transmitiam descobertas que jamais imaginava que faria, então eu me aproximei, abaixei e segurei sua mão, seus ferimentos eram muito profundos. Tantas palavras quantas estrelas no céu passaram por minha mente, mas só consegui lhe dizer “Eu me libertei!”. “Não, você libertou a todos nós!” ela respondeu em seu ultimo suspiro. Abracei-a fortemente e, por tudo que passamos, por tudo que aprendi, por tudo que vivi e do mais profundo eco de minha alma, gritei! Então novamente a voz tranqüila me disse “Deixe-a ir! Liberte-a!”. Essas foram minhas ultimas palavras nesse campo de batalha.

Hoje, do alto dessa montanha, olho o horizonte, as nuvens e vejo um novo mundo, e muito ainda a fazer, experimento cada momento como se fosse único. Estou empenhado em ajudar a construir um reino de liberdade e boas companhias, o que me conforta é saber que você já está nele e, mesmo que tão longe, sinto-a tão perto e sei que um dia nos encontraremos, para nunca mais ter que dizer adeus.
Escrito em Maio de 2006

Reciprocidade


As correspondências não são mais tão comuns desde que me mudei para o monastério, as vezes recebo noticias de meus pais contando sobre as novidades, sobre as viagens com a terceira idade, noticias dos tios e vizinhos também são comuns. Cartas que as vezes me fazem sorrir mas, muitas vezes, me fazem chorar, sinto saudades dos velhos tempos, principalmente depois que Marco resolveu seguir outros caminhos. Enfim, os tempos estão difíceis já não sinto mais a paz que procurava e nem mesmo minhas forças são as mesmas, as vezes me pego pensando coisas longes demais, tanto no passado como no futuro, sonhos de uma realidade distante e, muitas vezes, improváveis para um simples monge. Essa solidão me atrapalhava, me perguntava frequentemente “se minha busca é tão profunda e verdadeira, por que tenho que trilhar esse caminho sozinho? Se sou boa pessoa, por que me sinto assim? Qual, exatamente, é o significado disso? Será isso um jogo?”. Essas perguntas eram freqüentes e quanto mais as fazia, maior era o vazio. Cheguei até a rezar e pedir um alguém que me sanasse a solidão.


Ah! Como eu gosto das manhãs outonais, do som do farfalhar das folhas, do sol aquecendo a solidão fria da noite, é um dos poucos momentos que me sinto em paz, que contemplo a natureza. Mas foi em uma dessas manhãs de segunda-feira, dia de correio, que recebi uma carta de Marco, contando as novidades, como eu diria: “as BOAS novas”, pois eram realmente boas as noticias, ele fora indicado para representar um grupo de ação solidária na África, contava os fatos com detalhes e empolgação, pois seus sonhos estavam se realizando, contou-me também que mudara para Suíça, pois deveria fazer constantes reuniões com a Diretoria deste grupo. Por fim me convidava para sua festa de despedida.

Logo na parte da tarde, falei com o mestre e pedi permissão para viajar por algumas semanas, este que me respondeu sorridente: “Vá sim, você precisa sair daqui um pouco, sua mente está muito confusa, visitar seu irmão será bom para você. Aliás, mande minhas lembranças para ele”.

Três dias mais tarde embarquei para Genebra e quando vi meu irmão fiquei realmente eufórico, já não o via a 3 anos, estava mais robusto, o cabelo comprido, perto dos ombros e parecia realmente realizado, seu espírito estava forte, sua presença irradiava por todo o ambiente, pela primeira vez vi o esplendor de um homem realizado. Fiquei admirado com o vigor e a paixão em seu olhar, ele que sempre fora rebelde e impulsivo, agora estava decidido a respeito de seu destino.

No táxi, a caminho da casa de Marco, nos falamos estranhamente, percebi que ele pensava em inúmeras novidades e acontecimentos que não me relatara na carta, porém não sabia em que ordem ou como contá-las. Relatou algumas estórias sem fim, contou como recebeu a noticia que iria à África, contou sobre sua casa, sobre sua esposa, me prometeu fazer uma visita ao monastério assim que voltasse. Em meio a tantos fatos confusos tive tempo de falar um breve: “o mestre mandou lembranças”.

Nos primeiros dias em que fiquei hospedado, conversei bastante com Marco e com sua esposa Sara, boas conversas ao redor da mesa, boas risadas, boa comida e boa música, mas ainda sentia aquela velha solidão, não os culpo, pois tem sido excelente companhia.

Na quarta noite, estava mergulhado em reflexões que fazia, quando vi Sara no jardim, senti que estava pensativa, e que trazia um grande pesar e seu olhar. Aproximei-me a passos lentos e medidos, fazendo pouco barulho, para não lhe causar espanto ou surpresa, Sara virou enxugando as lagrimas e me disse:

- Oi, é você, está uma noite linda não?
- Sim está. Respondi me aproximando, coloquei a mão em seu ombro e com uma voz bem calma disse:
- Quer me contar algo? Parece aflita!
- Não, não, está tudo bem, só estou pensando aqui. Nada de mais, bobagens minhas. Sara falou evasivamente enquanto se afastava de mim. Não respondi, pois senti que deixei bem claro que estaria aberto à diálogos.

Episódio semelhante aconteceu durante a festa de despedida de Marco. A festa estava animada, reencontrei meus pais e até alguns primos e tios, conheci alguns amigos de meu irmão, bom a festa estava animada para todos, exceto para Sara que se esforçava em disfarçar seu desconforto e, repetidamente, se ausentava para o jardim. Incomodado com a situação, resolvi segui-la, os convidados e a festa repentinamente perderam a importância, então, me aproximei e notei, novamente que ela estava chorando aos soluços, então me decidi por ser mais direto, me aproximei e perguntei: -Sara, o que está acontecendo?

Tão logo terminei a pergunta ela desabou a falar o quanto já está sentindo falta de Marco, contou-me sobre brigas que tiveram, sobre seus sonhos e só então eu pude entender que ela estava em desespero por se sentir sozinha. Aquela mesma solidão.

Conversamos muito naquela noite e durante os dias seguintes, mesmo depois que Marco partiu eu decidi permanecer em Genebra para fazer companhia para Sarah, sentia que eu precisava disso tanto quanto ela. Estava empolgado por dentro, pois descobri que tinhamos muitas coisas em comum, desde modos de pensar, como alguns objetivos de vida e até fantasias infantis a respeito de destino. Foram dias em que pude sentir meu espírito elevado, sentia uma força extraordinária brotando de dentro de mim, tudo parecia mais claro, eu finalmente estava em paz comigo e, o mais importante, não me sentia mais só. Respirava aliviado a cada segundo do dia e as noites não eram mais habitadas por demônios.

Eu e Sara rapidamente nos tornamos amigos próximos, nos contávamos coisas que pensávamos em levar para o tumulo. Certamente não perdi a oportunidade de dizer a ela o quanto tinha sido valioso para mim conhecê-la melhor, o quanto aquilo mudou minha vida, me deu novas esperanças e, Sara relatava que sentia cada vez mais a reciprocidade desse sentimento.

Tudo corria bem, muito melhor do que poderia ter sonhado, até uma noite de terça-feira, sonhei com Sara, sonhei que a ajudava a fugir de alguma coisa ruim e, na tentativa de acalmar seu pranto, abracei-a forte com toda minha sinceridade desejando que tudo aquilo acabasse e seu sofrimento fosse embora, então, o abraço aqueceu nossos corpos, e pude sentir o calor de seu corpo no meu, sentia seu cheiro, sua pele macia tocando minha face e então, seus lábios tocando os meus. Acordei desesperado, meu coração palpitava feito uma trovoada, me senti bem por alguns segundos, mas logo comecei a sentir suor escorrendo por minhas mãos, lagrimas começaram a escorrer por minha face. Levantei-me, estava desesperado, sentia um aperto em meu peito, como se algo estivesse sendo arrancado lentamente, andei pelo jardim, pelo quarteirão, caminhei de um lado para outro, minha mente repetia a mesma pergunta incontáveis vezes “O que está acontecendo?”.

Já estava me acalmando quando avistei Sarah andando impaciente pelo jardim, parecia preocupada, como se descobrisse algo proibido, ao me aproximar, pude ver seus olhos me olhando na penumbra da noite, ela olhou em meus olhos, seu corpo queria me dizer algo, mas ela virou-se e correu para dentro sem olhar para trás.

Na manhã seguinte procurei disfarçar qualquer inquietação ou curiosidade minha, estava assustado e confuso, mas paradoxalmente sentia-me satisfeito, como se tivesse encontrado algo, algo que procurava a muito tempo, minha respiração estava leve, com breves calafrios esporádicos. Sarah estava inquieta, andava de um lado para o outro, esbarrava nas coisas, soltava meias frases, e observava cada passo meu discretamente, sentia que sua mente estava fabricando idéias. Nossas conversas já não eram tão mais empolgadas, eram profundas e marcadas por períodos de silêncio. Sara estava mergulhada em dúvidas, e eu, tão receoso quanto ela, tentava esconder algo que não sabia direito o que era.

Nesta noite me dei conta que meus demônios voltaram. Sentia como se estivesse preso em uma redoma de desespero e angustia, sentia-me sufocado, ouvia vozes me dizendo que isso era errado, que isso não estava certo, me debatia na cama, sentia calor e frio, suor e palpitações, tudo ao mesmo tempo. A dor me consumia, até que um grito ressoou no mais profundo de minha alma. “Como pode se apaixonar pela esposa de seu irmão?”. Acordei assustado, podia ver meus demônios se escondendo quando a luz do corredor lentamente invadiu o quarto, e quando Sarah entrou, todos já estavam escondidos e só restava a mim.

Ela se aproximou lentamente, seu olhar contemplava ternura e exitação, sentou-se ao meu lado e me abraçou, o mesmo abraço que sonhara, o mesmo abraço que temia. Novamente senti seu calor, sua pele, seu cheiro. “Sarah, não podemos!” tão logo eu disse, “embora queremos”, ela respondeu.

Saí caminhando sem rumo, deixei Sarah para tras, sentia-me vazio, sentia mergulhado em um fosso de solidão, sentia-me injustiçado. Estava cansado, caminhei para o jardim a passos largos, olhei as estrelas e então caí de joelhos e ao mesmo tempo em que meus joelhos tocaram o chão, as lagrimas expulsas de meus olhos também tocaram, então gritei!

“Sinto o tempo acabando, meu caminhar é um caminhar de lagrimas, fui longe demais, o que devo fazer? Estou assustado, eu me vendi. Eu sei que você pode me perdoar, mas eu sei que estou sozinho, eu sempre ando sozinho. Achei que o que eu lutava era certo, por todo amor de minha vida, por que tenho tanto pesar por algo tão verdadeiro? Isso não pode ser errado. Isso é errado? Isso é errado? Isso não pode ser errado!”.

Na manhã seguinte me despedi de Sara, me cortava o coração deixá-la sozinha, mas eu tinha que partir, então eu virei as costas e parti em encontro à minha desolação, parti de volta ao monastério.

As noites frias voltaram, e os demônios continuavam a me assombrar, recebia cartas de Marco mas não ousava abri-las, nada mais fazia sentido, estava perdendo minha fé, nem mesmo as manhãs outonais me traziam paz. Assim foi por vários dias, até que em uma manhã de domingo, após mais uma noite de desespero , levantei-me e, ao sair pelo corredor, me deparei com o mestre que perguntou calmamente:

-Noites inquietas meu jovem?

Após contar tudo o que sentia e tudo o que aconteceu, todas minhas indagações o velho senhor olhou em meus olhos, como se olhasse para dentro de mim e disse:

-Isso não é errado, como pode algo tão verdadeiro e maravilhoso ser errado?
-Mestre, eu jamais quis que isso acontecesse, mas esse sentimento não sai de meu peito. Disse em prantos, sentia um amargo na boca.
-Olhe para mim, meu corpo já não me obedece mais, minha pele é flacida e nem mesmo sinto direito o gosto dos alimentos. Mas meu coração, ah meu coração ainda pode sentir a energia que existe dentro de você agora, eu posso sentir isso sem me culpar e mesmo que venha a morrer em breve, eu sei que isso ficara nos corações daqueles que amo.

As palavras do mestre não tornaram as coisas mais fáceis, nem mesmo sei que escolhas tomarei a respeito disso. Mas, ao menos, me trouxeram paz.

“O homem é antropológicamente existente, não em seu isolamento, mas na integridade da relação entre homem e homem: é somente a reciprocidade da ação que possibilita a compreensão adequada da natureza humana”. (Martin Buber).

Escrito em Abril de 2006

Centelha de Vida


Minha respiração congelou quando abri os olhos e notei que estava de volta àquele velho casarão, senti meus suspiros congelando no tempo, minha cabeça rodava, e com a visão turva tentei, aos poucos, me levantar, mas minhas forças me abandonaram, não conseguia me mover, a cama era fria, minha visão oscilava entre um branco brilhante e aquele teto velho, mofado e pálido, tudo era pálido. Começava a sentir minhas mãos e pés formigarem, sentia meu corpo se entregando, mesmo assim tentava me livrar, tentativas inúteis e, quanto mais tentava, mais o quarto diminuía de tamanho, as paredes moviam-se e tudo tremia em gritos desesperados, insultos “Mentirosa!”, “Falsa!” eles diziam repetidamente, via vultos pela janela, olhos tão profundos que envelheciam as paredes por onde passavam, e exalavam a podridão, rodeavam-me como lobos em caça.

Tentava gritar, minha voz não saia, nem mesmo minha voz, quanto mais eu tentava mais as paredes me respondiam com insultos, mais os olhos me olhavam e se excitavam, arranhavam ao vidro, a porta, o teto, tentava incessantemente me livrar, todo meu corpo doía, sentia gosto de sangue, sentia a podridão saindo de mim, os gritos não saíam, eu queria ajuda, ninguém ouvia. Eu ouvia, ouvia passos, ouvia um sussurrar frio, ele me dizia “sempre que um amor nasce, um tem que morrer”.

Os vidros se quebraram, os lobos entraram e começaram a me arranhar, sentia suas garras penetrando na carne, nos tornozelos, nos joelhos, nas coxas, sentia seus dentes, via somente seus olhos. “Você nasceu para mim! Eu vou levá-la” dizia a voz. Debatia-me com forças que já não eram minhas, estava desistindo quando um ponto branco apareceu no teto, o gosto de sangue passou, lagrimas escorriam por minha face, o ar gelado se aqueceu, a luz dizia-me coisas que não entendia, mas fizeram meus gritos ecoaram com tanta intensidade que as paredes recuaram, os insultos cessaram, os lobos correram saltando aos montes pela janela e, gradativamente, o branco voltou. Dormi em paz.

O chão está gelado, meus pés doem, meu corpo treme, está frio, no ar, paira um silêncio tão intenso que ouço meu caminhar cauteloso, esta escuro lá fora, não se vê nada janela a fora, nem mesmo aquelas do teto, todas estão escuras, submersas no invisível, no inaudível, no inacreditável.

Caminho até a grande porta de madeira entalhada. Estou de volta ao casarão. No batente da porta está escrito: “Seus anjos não podem ajudá-la”. Cautelosamente viro o trinco, sinto uma grande esperança do outro lado da porta. O ranger da madeira irrompe o silêncio. Meu coração palpita, a respiração acelera, o desespero aumenta, a esperança se esvai como areia ao vento. Sentada perto da janela, vejo uma mulher, que me olha com ódio e diz me coisas que não entendo enquanto, lentamente, costura com linha cor de sangue a boca de minha boneca favorita. A boneca esta suja de ódio, de ódio e de sangue. Engasgo com meu próprio grito. Quero que ela pare, mas a mulher olha-me odiosamente e fura-se com a agulha. O ódio irrompe seu olhar, ela grita tão forte que meu coração aperta, arremessa-me a boneca que entra dentro de mim. A mulher começa ficar pálida, eu corro para acudi-la, mas ela se esfarela ao meu tocar. Sangue escorre em minha face, em meu corpo.

Olho janela afora, está tudo destruindo, existem lobos, os lobos me olham. “Mentirosa! Falsa” as vozes gritam. As paredes tremem e começam a me espremer, sinto-me imóvel, sinto meu corpo congelando. Vejo a luz no horizonte, ela se aproxima, em direção aos lobos. “Afaste-se deles! Vá embora, não se apague!”, meus gritos não são ouvidos em meio a tantos outros. A luz se aproxima lentamente dos lobos. Os gritos diminuem. O silêncio volta tranqüilo. Os lobos a contemplam atentamente em silêncio. Ela para em frente à janela, me dirige palavras incompreensíveis, as palavras entram em mim, me aquecem. As paredes recuam. Durmo em paz.

Olharia pela janela e buscaria a luz, isso me aqueceria, pararia as paredes, curaria os cortes, afastaria os vermes e o cheiro ruim, eles desistiriam de subir em mim, de entrar em mim e eu não teria que matá-los, portanto, não me machucaria. Isso me curaria, o sangue não mais escorreria, meu grito sairia, o ar entraria por meus pulmões, não mais me sufocaria e em paz dormiria.

Por muitas e muitas vezes tentei entender: o que era a luz? De onde ela vinha? Porque não entendia o que dizia? Queria agradecê-la por me fazer dormir em paz, por não temer dormir e também por que, lentamente sinto-a brotando dentro de mim e, cada vez mais consigo enfrentar aquele velho casarão e espantar os lobos, os gritos e as paredes. A cada dia rezo por nosso reencontro sinto a necessidade de tocá-la, de senti-la, e mesmo que não consiga, ao menos, de ficar perto dela.

Por muito tempo eu busquei isso, ela sempre aparecia para me aliviar e me deixar dormir, até que um dia, estava naquele velho quarto, as paredes me espremiam, os gritos me insultavam, eu corri para a janela e a luz estava lá, olhando para mim, “Eu estou com você, eu acredito em você, você não está sozinha” a luz dizia-me, não em palavras, dizia em meu interior. Então a luz informe tomou forma, olhos, cabelo, a paisagem pálida e mofada foi tornando-se branca, conseguia ver um vaso de flor do outro lado do corredor. Estava de volta ao hospital e em minha frente uma figura familiar, vestida com um jaleco branco um pouco amarrotado. Seus olhos expressivos olhavam-me, em silêncio, enquanto firmemente segurava minha mão. – Você está bem agora. Não sei se o que ela disse foi uma pergunta ou uma afirmação, por isso não respondi, busquei rapidamente palavras, mas soltei um breve “Doutora”. Ela sorriu e me disse: - Já te falei que não sou doutora!

“...Através do véu da incerteza humana
Existe um mundo que não nos é permitido conhecer
Quando este véu se rompe
É onde minha mente se perde
Uma viagem sem retorno
Através do sentido daquilo que chamamos de vida”.

“... E eu me sento aqui, com essas palavras vazias, para dizer
Que posso sentir seu espírito pairar sobre mim
Sinto suas asas angelicais
Acalmando meus medos e raivas
Que lentamente se vão”.
(Thorsen, O.)*

Não sei qual é o sentido da vida, nem mesmo sei o que é a vida, mas, graças a algumas pessoas sinto, dentro de mim, que vale a pena lutar por ela.

“Não podemos mudar o passado. Podemos mudar o significado do passado hoje”.

“Arte é: dar voz ao silêncio primordial”.
Escrito em Abril de 2006

A linha tênue


No início da primavera estávamos a caminho de casa, um pouco frustrado pois, devido à morte de Balduino II e à formação da Ordem dos Templários, meus serviços já não eram mais necessários em Jerusalém, dessa forma fora enviado de volta. Explicando de modo mais claro, fui para as cruzadas com o espírito cheio de fé, pronto para levar a palavra santa a todos e esparramar a glória do senhor por toda a terra, sentia como se conseguisse abraçar o mundo, como se nada pudesse me deter, meus votos de Cavaleiro ecoavam repetidamente em minha cabeça, me sentia forte, vigoroso como um viking, mas minhas forças foram desnecessárias.

Às vezes sorrio jocosamente em pensar que fui às cruzadas e voltei sem mesmo desembainhar a espada, mas apesar de tudo, foi uma viagem um tanto interessante, conheci Viena, Trípoli, Antióquia e até Constantinopla, mesmo que não sinta minha fé renovada por visitar aos lugares santos, tampouco sinta a presença Divina mais forte em mim, minha convicção para o bem ainda é forte. Por um outro lado, é como diz Alice, “dentre os males, fiquemos com o melhor”, aliás, ela foi a única grande recompensa desta viagem, casei-me com ela e decidimos que as núpcias ficariam para a chegada à nossa terra. Ah como eu gosto do contraste de seus olhos caramelados em contraste com seu colar de ouro que, como pingente tinha uma pedra cuidadosamente retirada do Monte das Oliveiras.

Tão logo chegamos, procurei uma audiência com o Senhor de Saint Jean, e tão logo conversamos sobre o contrato, ele se recusou a cumprir a promessa de seu pai, enfatizando que não haviam mais terras a serem doadas e, mantendo um sorriso um tanto sarcástico, dirigiu me algumas calúnias e balburdias a respeito de meu valor para a realeza ou para o Papa. Senti-me traído, como se fora enganado e, tudo aquilo por que lutava – ou queria ter lutado - derramara-se como água, então dirigi palavras grossas ao Lorde, que me respondeu o seguinte discurso.

“Você não vale nada, não vale o que come, o que bebe, não vale nem mesmo o sangue que corre em tuas veias, não passa de um servo que foi pobremente enobrecido com o direito da espada. Não terá tuas terras, aliás Minhas terras, pois eu sou dono delas agora, então saia de minha frente seu Bastardo!”

As palavras ecoaram em meu coração como cravos, vi-me tomado por um ódio ilimitado, como que, se eu gritasse, tudo aquilo desabaria, mas o grito não saiu, ficou entalado, produzindo apenas um silêncio odioso que quebrei com o bater das portas durante minha saída.

Passando pela praça deparei-me com jovens treinando para a arquearia ou infantaria, jovens que foram pegos pela mesma promessa que eu fora, então sem pensar, dirigi-me a eles a passos pesados, arrancando suas armas de madeira e batendo em suas cabeças. –Voltem para casa. Eu dizia. –Voltem para casa. Ele é um mentiroso, o Senhor de Saint Jean é um mentiroso, ele quer levá-los para a morte. Ele não está a serviço do Papa. Gritava isso repetidamente, minha garganta doía, e sentia alegria no coração, afinal “minha palavra só dirá a verdade”. Via as pessoas falando coisas, mas não ouvia sons, estava entorpecido, tão logo ouvi o grito desesperado de Alice me pedindo para parar, vi a multidão se abrindo e os guardas chegando, então fugi, pulando e me jogando por cima das pessoas, corri como um covarde, tive medo, mas estava aliviado, refugiei-me no bosque até o escurecer. Pensava em voltar para casa, pegar Alice e ir para a Normandia ou Inglaterra.

Assim que me acalmei, tomei o rumo de volta à cidade, com toda a cautela, observando, mediando, planejando o melhor caminho, para que o menor número de pessoas me vissem, teria de ser rápido, abordar Alice, e trazê-la para fora. Então, passei pelo portão lateral, entrei por uma viela escura à esquerda, subi correndo as escadarias, tão rápido que dois senhores nem conseguiram me identificar, subi no telhado do estábulo e então pulei para dentro de casa. Havia um cheiro gélido no ar, no mesmo momento um forte calafrio subiu por minhas costas, amolecendo minhas pernas, caí de joelhos, meu mundo desabou com a imagem de Alice pendurada pelo pescoço, enforcada. Engoli seco, mais uma vez, senti um gosto amargo, gosto de ódio com desespero, dentre grunhidos e suspiros, tentativas desesperadas de achar palavras ou qualquer coisa que desfizesse tudo isso, chamei seu nome, mas não houve resposta. Corri para seu corpo, a soltei e desabei junto a ela, quando me dei conta, seu pingente estava em minhas mãos. Tentei acordá-la aos tapas, mais uma vez, sem resposta.

Sai bruscamente aos tropeços pela porta, desci a rua como se fosse um bêbado, esbarrei nas coisas e nas pessoas, por sorte não fui visto por nenhum guarda, voltei para o bosque e simplesmente caí, deixei-me levar, desisti, a imagem das marcas no corpo de Alice me castigavam, como se fossem minhas, me desesperava mais e mais ao pensar o quanto ela chamou para que fosse salvá-la, o quanto ela esperou até seus eternos últimos segundos. Gritava, aclamava por um milagre, e uma única pergunta não me saia da cabeça: -Deus, onde está você? Pedia que ouvisse minhas preces e a salvasse nesta noite. Eu olhava para seu pingente, e me lembrava de seu sorriso, de seus olhos, agora fechados para sempre, então pude sentir sua dor e desejei que, a cada suspiro meu, fosse o último.

Para meu desespero, acordei na manhã seguinte, andei por horas a finco, sem direção, andei em círculos, andei pelo bosque, pelas plantações de trigo, de repolho, andei durante a noite, sob a lua e o sol e como único companheiro, o pequeno pingente, ele era o único alivio para minha dor, minha única alegria, por segundos eu o contemplava e a nostalgia levava, por breves segundos a dor embora. Nesses dias eu o admirava sempre.

Um certo dia, ao passar por um pequeno riacho, tropecei e fui ao chão sem esforços para permanecer andando, levantei-me com a ajuda de minha espada, foi então que meu voto ecoou como um trovão dentro de mim:

“Seu coração carregará a fé.
Sua palavra só dirá a verdade.
Sua espada trará justiça...”.

-Justiça seja feita. Falei para mim mesmo, e ao ouvir minha própria voz proferindo a sentença, senti-me diferente, minha dor virara empenho.

Por dias observei, planejei e arquitetei um modo de entrar e sair do nobre casarão sem que me percebessem, andava encapuzado, pelas sombras, pelas vielas, não conversava com ninguém, nem mesmo falava sozinho, agora era só comigo, entre eu e o Senhor de Saint Jean.

Na noite mais propícia para a investida, aproximei-me do casarão, passei pelas patrulhas que embebidas dormiam profundamente, passei pelos arqueiros das torres, subi pela lateral dos portões principais, rastejei pelo telhado do primeiro piso, subi pelo roseiral que dava acesso ao quarto do Senhor, então, cautelosamente entrei pela varanda e durante meus primeiros passos, lentamente desembainhava a espada e a empunhava tão fortemente que meus pulsos doíam e até começaram a tremer, mesmo assim mantinha a lamina para cima, pois não queria que fosse um sacrifício e sim uma execução.

Logo que adentrei o quarto, o assoalho rangeu e ouvi um súbito “Ã?”, vi algo se movendo em minha direção, golpeei sem exitar, e então o som da espada cortando foi acompanhado de um grito agonizante de dor, ouvia movimentos pelo quarto, até que uma tênue luz se acendeu, então vi, que decepara o braço do Senhor e, ainda percebi que, no canto à minha direita, a Senhora e seus dois filhos estavam encolhidos, abraçados, tão aterroziados que só conseguiam emitir grunhidos para pedir ajuda, eu senti meu rosto sorrindo com um tom levemente sarcástico, dei-lhes as costas, ergui a espada acima de minha cabeça, olhei nos olhos do Senhor, que expressava impotência e desespero, mas quando preparei o golpe, um dos filhos do Senhor correu em minha direção, seus passos foram seguidos de um inteligível e desesperado chamado da mãe. O garoto chorava e a única coisa que consegui entender foi: “Não... mate!”.

Rapidamente eu me virei para a mãe e para as crianças e disse: -Lagrimas de sangue eu chorei, mas os gritos ainda... eu ainda os ouço dentro de mim. Justiça seja feita!

Depois daquela noite, eu andei por bosques, cidades , atravessei rios, subi montanhas, até que encontrei um monastério isolado, silencioso, onde me refugio até os dias de hoje. Perdi minha fé, não sinto Deus na Justiça, e também não vejo a linha tênue que separa a Justiça da Vingança. Ainda sinto-me vazio, não sinto mais dor alguma, a não ser quando olho aquele velho pingente.
Escrito em Março de 2006